Por Andrei Cassiano e Adão Cassiano
No próximo dia 01/06/2016 passará a vigorar o art. 23, LXXXI, do Regulamento do ICMS do Rio Grande do Sul (RICMS), editado com base no Convênio CONFAZ nº 181/2015, o qual estabelece a cobrança de ICMS sobre as operações com softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer meio, inclusive nas operações efetuadas por meio de transferência eletrônica de dados.
No próximo dia 01/06/2016 passará a vigorar o art. 23, LXXXI, do Regulamento do ICMS do Rio Grande do Sul (RICMS), editado com base no Convênio CONFAZ nº 181/2015, o qual estabelece a cobrança de ICMS sobre as operações com softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer meio, inclusive nas operações efetuadas por meio de transferência eletrônica de dados.
Em outras palavras, a partir de 01/06/2016 o download de softwares, no Estado do Rio Grande do Sul, passará a ser tributado pelo ICMS, o que tornará a operação mais onerosa tanto para o desenvolvedor/vendedor do software, como para o consumidor.
Todavia, referida cobrança não se sustenta e poderá ser questionada perante o Poder Judiciário, conforme se passa a demonstrar.
O exame da cobrança do ICMS sobre as operações envolvendo softwares no STF principiou pelo julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 176626, quando foi decidido, pela 1ª Turma, em 10/11/1998, que, “[n]ão tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de ‘licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador’ - matéria exclusiva da lide -, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado ‘software de prateleira’ (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.” (Os destaques em negrito e entre aspas simples são do original).
Afirmou-se, no aludido julgado, que a controvérsia é insolúvel sem a definição do conceito de mercadoria contido na Constituição Federal. Acentuou-se que o conceito de mercadoria não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral. Mercadoria, afirmou-se naquela ocasião, “... é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo.”
No caso, considerou-se que se tratavam “... de operações que têm como objeto um direito de uso, bem incorpóreo insuscetível de ser incluído no conceito de mercadoria e, consequentemente, de sofrer a incidência do ICMS.”
Com apoio em doutrina, entendeu-se que a proteção do software é um direito exclusivo que não é alienado com o licenciamento de seu uso, estando fora do campo de incidência do ICMS. Todavia, isso não retiraria da área de incidência do imposto a circulação de cópias ou exemplares de programas de computador, comercializados no varejo, o chamado software de prateleira.
Entretanto, de modo contraditório, o acórdão assevera que seria possível a incidência do ICMS sobre o suporte físico, o corpus mechanicum, que serve de meio para difusão e utilização do software (CD, DVD, pen drive, por exemplo).
Exarou-se então o entendimento de que, na hipótese, existiriam dois contratos, um de licenciamento do direito de uso e outro de compra e venda do corpus mechanicum.
Entretanto, o voto do eminente Ministro Relator finalizou dizendo: “A distinção é, no entanto, questão estranha ao objeto desta ação declaratória, reduzido (sic) ao licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador, bem incorpóreo sobre o qual, não se cuidando de mercadoria, efetivamente não pode incidir o ICMS; por isso, não conheço do recurso: é o meu voto.” (O destaque sublinhado foi acrescentado).
Observe-se que a distinção dos dois supostos contratos, e a afirmação de incidência do ICMS sobre o suporte físico, são apenas simples argumentos acessórios (os chamados obter dicta) do RE 176626, pois a questão estava restrita apenas ao fato de saber se o licenciamento do direito de uso estava ou não sujeito à incidência do ICMS, e o julgado concluiu pela negativa ao não conhecer do recurso interposto pelo Estado de São Paulo.
Portanto, no referido precedente não se decidiu sobre a incidência do ICMS sobre o suporte físico do software, ficando as razões de decidir (ratio decidendi) do julgado restritas à questão do licenciamento ou cessão do direito de uso do programa de computador.
E tanto é assim que na própria ementa do acórdão constou “[n]ão tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de ‘licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador’ - matéria exclusiva da lide -, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS:...” (O destaque sublinhado foi acrescentado. Os destaques em negrito e entre aspas simples são do original).
O tema da incidência do ICMS sobre o suporte físico, como objeto específico de lide judicializada, somente foi matéria de debate no STF no RE 199464, julgado em 02/03/1999, pela primeira Turma e, posteriormente, no RE-AgR 285870, em 17/06/2008, pela 2ª Turma. Entretanto, ambos esses julgados tomaram em consideração os argumentos acessórios (os obter dicta) do RE 176626, como se fossem jurisprudência firmada pela Corte.
A despeito do teor do precedente da 1ª Turma, no RE 199464, e daquele tomado no RE-AgR 285870, pela 2ª Turma, o fato é que a matéria não foi até o presente momento examinada pela Corte Suprema em sua composição plenária, especialmente considerando que houve, desde então, grande alteração na composição daquele Pretório.
E no RE 176626 da 1ª Turma, ainda que como argumento acessório (obter dictum), o que se afirmou foi“...que o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo.”
Posteriormente aos precedentes mencionados, e já com outra composição, o STF, agora por seu Plenário, ao examinar o pedido de liminar na ADI-MC 1945, deferiu parcialmente a medida liminar para suspender a expressão “observados os demais critérios determinados pelo regulamento”, presente no § 4º do art. 13, e o parágrafo único do art. 22, ambos da Lei 7.098/1998, do Estado de Mato Grosso.
Assim, ficaram mantidas as disposições da Lei Mato-grossense que determinavam a incidência do ICMS sobre as operações com software, ainda que por meio de transferência eletrônica de dados, e que estabeleciam como base de cálculo o valor da operação e qualquer outra parcela debitada ao destinatário, inclusive suporte informático.
Esse precedente tomado na ADI-MC 1945 cuidou do exame apenas da liminar. Não decidiu o mérito da matéria. Trata-se, portanto, de um exame preliminar, cujo mérito ainda será decidido pelo Plenário da Corte e com outra composição.
No exame da liminar entendeu-se, em juízo de mera delibação, próprio dos juízos liminares, que, mesmo sendo um bem incorpóreo, pode ele se enquadrar no conceito de mercadoria, o que contraria a já referida posição anterior do Tribunal que, ainda que como argumento acessório (obter dictum), estabeleceu que mercadoria só pode ser bem corpóreo.
Entretanto, se os argumentos acessórios (obter dicta) serviram para fundamentar outras duas decisões sobre a incidência do ICMS sobre o suporte físico, também os mesmos argumentos acessórios (obter dicta) hão de servir para se afirmar que mercadoria não pode ser bem incorpóreo, posição que a decisão sobre a liminar contrariou.
Além disso, também se referiu, no exame da liminar, à questão da energia elétrica que, embora não sendo bem corpóreo, sobre ela incide o ICMS.
Entretanto, não se observou que havia dúvida se energia elétrica é mercadoria ou serviço, razão pela qual, inclusive, houve disposição expressa na Constituição quanto à incidência do ICMS sobre a energia elétrica, inscrita na alínea ‘b’ do inciso X do § 2º e no § 3º, ambos do art. 155 da Constituição Federal.
Ademais, a ADI-MC 1945 ingressou no STF em 21/01/1999, sendo que a apreciação do pedido de liminar pelo Plenário do STF iniciou-se em 19/04/1999 e somente foi concluído em 26/05/2010, mais de onze anos depois de iniciado o julgamento da postulação da liminar.
A Lei nº 7.098, do Estado de Mato Grosso, é de 30 de dezembro de 1998.
Logo, o ajuizamento da ação se deu menos de 30 dias depois da edição da Lei.
Assim, outro dos argumentos utilizados pelo STF, para manter a Lei – o longo tempo de sua vigência – não se justifica porque a demora na apreciação foi do próprio Poder Judiciário, cuja mora não pode prejudicar o direito dos contribuintes.
Esse contexto permite afirmar que o tema não está ainda decidido no âmbito da Suprema Corte, seja porque, em dois precedentes, examinou-se apenas a questão da incidência do ICMS sobre o suporte físico, e mesmo assim tomando por base os argumentos acessórios (os obter dicta) de um julgamento que apreciou outra questão, a do licenciamento e não do suporte físico; seja porque nos precedentes afirmou-se que o conceito de mercadoria envolve apenas bem corpóreo, não incidindo o imposto sobre bem incorpóreo; seja porque na ADI-MC 1945 tratava-se apenas da apreciação de pedido de liminar, e não se examinou o mérito da ação e muito menos se abordou o tema com a profundidade exigida, especialmente no que atina com o conceito de mercadoria.
Em tais circunstâncias, alterações como as do art. 23, inciso LXXXI, do RICMS, decorrentes do Convênio ICMS nº 181/2015, prevendo a incidência do ICMS sobre o download de software, não só poderão, mas certamente serão objeto de nova discussão no âmbito do Poder Judiciário.
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